Talvez a tecnologia exacerbe em nós um lado malvado. Talvez não seja a tecnologia de per si, mas antes as ferramentas cada vez mais fáceis de usar e cujo produto de trabalho (malvado ou não) surge cada vez mais rapidamente, fruto dessa utilização. Quando olho para trás, sorrio ao relembrar certas passagens da minha própria vida. Há quarenta anos, estudava ocasionalmente “técnicas de malvadez” por correspondência. Sim, os círculos técnicos estavam geograficamente dispersos: se queríamos tirar dúvidas sobre hacking (mesmo do mais romântico, como piratear uma cabine telefónica) ou ficção científica, como interceptar as comunicações RS 232 de uma ATM, tínhamos de escrever cartas a quem sabia mais que nós (nunca cheguei a por em prática nenhuma dessas técnicas, descansem).
Vinte anos depois, a vida dos gémeos malvados já era mais fácil – um jantar numa pizzaria, com sete ou oito congéneres, era suficiente para recompilar o que se sabia sobre determinada matéria, actualizarmo-nos sobre novas técnicas e prosseguir as facetas “negras” das nossas vidas, de forma mais ou menos discreta. Uma década foi suficiente para que as confrarias da malvadez desaparecessem de forma presencial, transfigurando-se num fórum colectivo virtual onde o primeiro nome se extinguia para dar lugar a alcunhas mais ou menos ridículas como ‘GatinhaRosa’ ou ‘MacacoVerde’. Contudo, mantinha-se a transmissão de conhecimentos, da forma clássica que existe desde que o mundo é mundo.
Depois, tudo se começou a precipitar. O advento do vídeo tornou mais simples e mais anónimo o acesso ao conhecimento; tanto posso aprender a colar um plástico partido com bicarbonato de sódio e super cola, como fazer explodir uma encomenda postal. Aquilo que fui vendo envergonha, claramente, o meu passado de malvadez… com a possibilidade de treinarmos os nossos próprios módulos de IA, chegámos a uma encruzilhada que antes não existia. Antes, o próprio gémeo malvado podia (se quisesse) auto-regular a sua maldade. No treino de um módulo IA, essa auto regulação quase (realço o quase) não acontece e as coisas ficam um pouco mais sem travões. A circulação de módulos “do mal” é inevitável e leva a capacidade de aprender, transmitir e combinar conhecimentos para outro patamar.