E se as decisões judiciais fossem feitas por inteligência artificial? E se o ubíquo algoritmo definisse programas escolares, a agenda cultural, o orçamento de Estado? E se nos dissesse o que comer, com quem falar e como viver? Com quem falaríamos para interceder por nós junto desta entidade suprema?
Troquei o ecrã do PC pelo da sala de cinema do CAE, na Figueira da Foz, para assistir ao filme ‘Justiça Artificial’, de Simón Casale. A história gira à volta da otimização do sistema judicial com IA, a melhor solução para todos os problemas desde o Ozempic. A imagem da Justiça é uma mulher vendada a segurar uma balança. O filme questiona o que acontece quando entregamos essa balança a empresas, entidades que têm como único fim o lucro. Mas, como ‘optimização’, no dicionário corporativo, significa ‘despedir’, fazer mais com menos e mais depressa, com foco no cifrão e zero no cidadão (vulgo utilizador), as implicações são muitas e profundas.
Entre outras questões, imaginei logo que utilizadores premium teriam carta para sair da prisão. No pacote básico, cumpririam pena pelo mesmo crime. Assim como hoje, e um pouco como quando a Igreja Católica permitia aos nobres abastados comprar um lugar no céu. Agora, as indulgências vão para as Big Tech. As ideologias predominantes defendem o esvaziamento das competências e responsabilidades das instituições que garantem o equilíbrio social, albergadas sob a figura do Estado. Privatizar já e monopolizar depois, mesmo que seja à custa dos direitos básicos.
Mas a Justiça, a Saúde, a Educação, a liberdade de expressão e a igualdade são direitos humanos. Direitos de todos e não só para quem os pode pagar. Entregar a optimização dos serviços e instituições sociais fundamentais a quem só se preocupa com dividendos accionistas é promover a desumanização dos restantes. O debate a seguir ao filme foi favorável à tecnologia, e bem. Tal como a Justiça, a tecnologia é cega. Faltou só saber quem fica responsável pela fiabilidade do prumo da balança.