O barco do torpor

Por: Alexandre Gamela
Tempo de leitura: 2 min

Durante duas semanas segui a viagem sedativa de um contentor pelos mares do Pacífico Sul em directo no YouTube. Existem muitas apps para adormecer ou meditar mas nada bate as imagens de um navio em alto mar com uma música inócua de fundo enquanto nos recitam o catálogo Ikea 2020 em loop. As propriedades ASMR da língua sueca são surpreendentes.

A Ikea percebeu a Internet antes de todos nós. Os seus produtos são o denominador comum de uma classe média com aspirações estéticas, mas de posses modestas. Deu à paisagem de 90 m2, ou menos, do T2 médio uma individualidade de expressão uniforme, como quartos da mesma cadeia de hotéis: outro sítio, o mesmo ambiente familiar – a nossa casa numa outra casa. A mesma lógica que nos impede de personalizar uma rede social além das fotografias que temos nas estantes.

«Que conjunto de jantar me define?», pergunta a personagem sem nome de Edward Norton na memorável cena do catálogo Ikea de Fight Club. Vinte anos depois, esta e outras questões mantêm-se: quem somos, se não somos o que vemos no catálogo da vida dos outros? Os incel, uns rapazes que se sentem excluídos da vida apenas porque não sabem ter uma própria, usam o filme para validar a sua frustração, mas não perceberam nada do que viram.

Fight Club é o On the Road de fim de século XX: um personagem infeliz na sua vida embarca numa viagem fora do sistema, acompanhado por um alter ego niilista e dominador (Durden = Moriarty), até que o supera e volta – melhorado – à sua realidade. Só que toda a gente prefere a excitação da viagem à moral da história.

«I Am Jack’s Inflamed Sense of Rejection», acham eles. Tenham calma, escolham a colcha do catálogo 2020 que vos define e sonhem em sueco.

A mirar o espelho negro das redes sociais desde ainda antes de haver uma série de TV sobre isso.
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